Autos sem Fé

No primeiro dia de agosto de 1568 – era um domingo – Maria Antónia, Teodora Henriques, Antónia Nunes e Filipa Lourenço foram julgadas pelo Tribunal do Santo Ofício de Coimbra. Ouviriam juntas a leitura do auto de fé que as condenava.

Maria, judia, apenas foi liberada para poder cuidar do seu marido doente por dois meses em Buarcos, devendo voltar de imediato à prisão em Coimbra. Teodora, de Condeixa, seria instruída na fé católica. Antónia, acusada genericamente por blasfémias, teve de ouvir a sua punição com uma vela acesa a derreter na mão. Filipa, condenada a nunca mais sair de Coimbra, era moradora em Lamego, no norte do país, e não veria mais os seus amigos, vizinhos ou a sua família. No seu processo, encontra-se a seguinte nota: “Tinha dentro um livro de poesia”.

Assim como não há história muda, não há arquivo mudo: Teodora, Antónia, Maria e Filipa não são ficção. Elas representam um recorte factual das mulheres existentes nos processos do Tribunal do Santo Ofício de Coimbra

Vocalizar o Arquivo

© Gabriela Valente | TAGV

Os autos sem fé são uma reinterpretação crítica dos históricos autos de fé – cerimónias ritualizadas de penitências pública alicerçadas na Igreja Católica – que entre os séculos XVI e XIX terão sido representativas de uma violenta perseguição a pessoas inocentes, entre elas, mulheres.

Iniciado em 2020, este projeto de investigação culminou na realização de duas leituras participativas com o apoio da coprodução 23 Milhas e TAGV. As duas leituras – no dia 30 de março, em Ílhavo, e no dia 31 de março, em Coimbra – aconteceram no espaço público – no largo do Teatro da Vista Alegre e no largo de São Bartolomeu. Ambas decorreram na proximidade de igrejas e, mais concretamente, na proximidade das portas laterais das igrejas, pois também aqui se pretendeu vocalizar uma narrativa à margem de certa maneira

© Pedro Mostardinha | 23 Milhas

Seguindo uma perspetiva histórico-crítico-feminista, esta pesquisa proporciona simultaneamente uma discussão sobre as materialidades da cultura e a digitalização das humanidades. A sua abordagem metodológica parte do contacto com o arquivo – que sempre nos fala de uma falta – e, mais concretamente, o arquivo digital. Assim, a partir do levantamento, seleção e análise de cerca de 500 documentos disponíveis no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, foram extraídos perfis e informações respeitantes às mulheres condenadas pela Inquisição – instituição patriarcal e económica que se terá propagado pela ação do medo, da vergonha e da vigilância. De modo que aquilo que habitualmente se denomina como autos de fé são, nesta proposta, autênticos autos sem fé.

Assim, vocalizar conjuntamente o arquivo – os dados brutos das mulheres sentenciadas e o veredicto das suas condenações – contribuiu para a construção de uma escuta coletiva e crítica sobre a ação da Inquisição, em Portugal. Ambos os eventos foram enquadrados no âmbito do Dia da Memória das Vítimas da Inquisição. Um dia que, desde 2020, pretende perpetuar na memória coletiva a extinção do Tribunal do Santo Ofício, a 31 de março de 1821, em Portugal.

Registo fotográfico

© Pedro Mostardinha | 23 Milhas

Registo fotográfico

© Gabriela Valente | TAGV

Videoarte

© Frederico Pompeu

Ficha técnica

coprodução TAGV + 23 Milhas  

direção artística e científica do projeto Elizama Almeida & Mafalda Lalanda  

acompanhamento artístico Frederico Pompeu, Rodolfo Freitas e Tomás Toste  

acompanhamento científico Clara Pereira, Julia Barandier e Joana Passi (grupo de estudos Lacuna PUC-RIO) 

residência de coprodução Laboratório das Artes do Teatro Vista Alegre em Ílhavo (23 Milhas) 

parceiros MATLIT LAB – Laboratório de Humanidades (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)

Elizama Almeida

Mafalda Lalanda

Tags: arquivo digital voz