Texto-objeto-feijão-mágico

“Texto-objeto-feijão-mágico” foi o primeiro artefacto produzido no contexto do MATLIT Lab, em 2019. Este objeto estético experimental foi resultado do projeto idealizado e conduzido por Patrícia Reina e Thales Estefani, tendo como objetivo elucidar conceitos e questões sobre programabilidade e criação textual por meio da inventividade especulativa e do “critical making” (Matt Ratto, 2011).

A obra consiste em duas bandejas idênticas com 20 vasos, onde foram plantados grãos de feijão com palavras gravadas à laser. As palavras, retiradas do conto “Jack and the beanstalk”, obedeciam a uma estrutura específica e formavam frases sintaticamente equivalentes, que serviram de base para alimentar o sistema para criação de textos combinatórios Poemário, de Rui Torres e Nuno Ferreira.

O Poemário foi responsável por determinar a rega das sementes dos vasos: no momento de geração das iterações no sistema, palavras com a mesma função sintática são combinadas aleatoriamente, dando origem a novas frases com novos significados. Assim, eram regados os vasos cujas palavras nos feijões eram selecionadas por esse motor gerativo. A diferença entre as duas bandejas estava no número de iterações do Poemário para as regas: a primeira era regada consonante uma única iteração; para a segunda, três iterações. Os feijões cresceram, com grandes diferenças de desenvolvimento e posições, revelando as palavras e criando grande diversidade de leituras para quem vagueava o olhar por entre as plantas.

Um dos conceitos centrais que inspirou o projeto foi a ideia de “poder germinativo” (Pedro Barbosa, 1996), que possibilita pensar a centralidade das ideias de latência e potência na programabilidade. O computador, visto como uma máquina para manipular sinais a alta velocidade, actualiza as possibilidades combinatórias ou estruturais entre os sinais segundo regras de um determinado algoritmo potencial, criando algo que não existia à partida; ou, “que não existia senão em estado latente”; ou, “já contidas no programa em forma de potência” (Ibid.:35-6).

“A informática traz (…) para o terreno da Arte a ideia de «poder germinativo» (…): e se não podemos dizer que a semente é já a árvore formada (pode até nem chegar a sê-lo), também não se poderá negar que ela contém já potencialmente toda a árvore futura. Daqui decorre a noção de «texto potencial» (ou «texto virtual»): um texto materialmente em aberto, concebido apenas sob a forma de projecto, mas não preexistente como tal.” (Ibid.:36)

A obra em causa também toma emprestado o conceito de “texto-objeto-mágico”, definido por Ana Hatherly como o objeto cujo caráter unitário, “a sua funcionalidade, residia maximamente no desejo de interpretação do seu beneficiário (…) exigia do seu utente uma leitura interpretativa adequada, sem o que se correria o risco de se perder a sua eficácia” (1975: 141-2). Hatherly identifica essa característica ao descrever a poesia concreta, que tinha como um dos objetivos abolir o subjectivismo na arte. Essa exigência de uma interpretação adequada e objetiva acabou, porém, por criar um novo pensamento mítico e aproximar a funcionalidade do objeto “da moderna técnica de interpretação dum texto: a metaleitura, a leitura criadora” (Ibid.: 142). De forma semelhante, e traçando o paralelo com o “Texto-objeto-feijão-mágico”, os processos de programabilidade, na busca por estruturas objetivas, acabaram por embasar o desenvolvimento de estruturas mais flexíveis de escrita e leitura do objeto, contribuindo para a visão do texto como um evento probabilístico (Johanna Drucker, 2009).

A criação da nossa versão de “texto-objeto-mágico” evidenciou que o processo de “metaleitura” — ou “leitura criadora” — deu-se em dois níveis, tanto na execução do código quanto na fruição literária do objeto final. A múltipla presença do aspeto generativo da palavra (no código e na semente) e combinatório (na execução do código e na disposição dos feijões) se amalgamaram no processo de leitura. O computador, ao ser controlado pelos realizadores do experimento, executa o programa a fim de realizar a rega das sementes e acaba por “escolher” leituras a partir do repertório (a primeira leitura criadora). Com os feijões crescidos, instaura-se, então, um processo de iteração no qual as possibilidades de leitura criadora são incomensuráveis pela probabilística da subjetividade do(a) leitor(a).

A realização do projeto também evidenciou como os atributos objetivos da programabilidade acabam por estabelecer variáveis não-programáveis, tomando por metáfora o cariz projetual da semente e o controle de uma das condições para sua germinação – a rega -, que podia corresponder ou não aos resultados esperados para o crescimento e a revelação das palavras.

Os resultados do projeto foram apresentados na conferência “Ana Hatherly: Programabilidade e Criação”, no Colóquio de Matemática e Literatura V, que integrou as atividades do 5º FOLIO (Festival Literário Internacional Óbidos), em 2019, e durante as atividades do evento “Materialidades da Literatura na Torre Literária“, em 2022.

Patrícia Reina

Thales Estefani

Fotos:
Thales Estefani

Duração
2019

Categorias: Humanidades Digitais Literatura Digital
Tags: applied research materialities of literature reading